sexta-feira, 1 de maio de 2015

Dia 2 - Para cima com gigantes à vista

A caminhada ganharia mais alguns ângulos de curva para cima no segundo dia. Dos 1.100 metros acima do nível do mar, do Rio Kukenan, atingiríamos os 1.850 metros do acampamento Base, nos pés do Monte Roraima. A vegetação mudaria bastante, da savana até chegarmos a uma floresta de árvores altas na base da montanha. Embora íngreme, seria uma pernada curta, de apenas sete quilômetros. Antes disso, tínhamos que nos alimentar.

Segundo dia de viagem mais íngreme. Na paisagem, o Monte Roraima e o monolito natural Tök-Wasen, uma parte no extremo Sul do Roraima que se rompeu do monte (à direita)

No café da manhã experimentamos a arepa, uma massa, à base de farinha de milho e água, frita em óleo. Era a comida dos carregadores Pemóns, mas experimentamos, o casal Marcelo e Michella e eu, junto com os preparadores do café. Para os visitantes, ainda tinha pão no Rio Kukenan, não eram tempos de arepa. Seríamos apresentados oficialmente à iguaria lá em cima do monte.

Barracas no acampamento do Rio Kukenan. É hora de levantar

A guia Antonia novamente comandou a sanfona, caminhando com a infantaria que ganhava o reforço de Marcelo e Madie. Borracha guiou o pessoal da retaguarda. E Tensing? Bem, Tensing ficou pra trás cuidando da logística, daria uma boa vantagem para a gente e depois nos alcançaria em sua passada ligeira.

Otávio prepara as arepas, enquanto Gabriel explica a receita para Michele e Marcelo

Ele alcançou a infantaria na parada do lanche, no acampamento Base Militar, um espaço no meio caminho entre o acampamento Base e o Rio Kukenan, usado pelo exército venezuelano acampar na época da demarcação das fronteiras com Brasil e Guiana. Até hoje não entendi como eles armavam as barracas naquele terreno acidentado e cheio de plantas pontiagudas.

Aproveitamos para descer até um riacho e encher os cantis. Eu fui sozinho e perdi a trilha. Andei pra baixo, pra cima, pros lados até que “blosh”, pisei num belo exemplar de merda humana. Tinha encontrado a trilha novamente. Voltei onde o pessoal lanchava melões e bolacha. Todo lixo produzido é separado num saco que desce o monte e é descartado fora do Parque.

E então, repararam na expressão de Andri. Surgia o Fantasma do Monte Roraima

Nas paradas, pude conhecer melhor cada amigo de viagem. Todo mundo, aliás, ficou assustado quando reparou a cara de Andri, escondida debaixo do boné. Aquele protetor solar branco caía como massa corrida em seu rosto, dando a ele contornos fantasmagóricos. O apelido “O Fantasma do Monte Roraima” acompanharia nosso amigo Andri pelos próximos dias.

O guia Tensing e sua paixão pelas plantas. No alto do Roraima teríamos uma aula

Cinco últimas subidas, uma mais íngreme que a outra, anteciparam a chegada ao acampamento Base. Durante a caminhada, com os guias, conhecemos um pouco sobre as plantas da savana. Bromélias do gênero Brocchinia, orquídeas de várias cores e a amarela Curatella americana são algumas que enfeitam a paisagem. Ao fundo, o Monte Roraima se agigantando cada vez mais em nosso ângulo de visão. Em seu topo, nuvens nervosas eram um sinal de o que nos aguardava lá em cima.

O não tão belo acampamento Base

Era dia e fazia calor quando chegamos ao acampamento Base. A recepção não é nada agradável: o lixo se acumula no entorno de uma das barracas de apoio, grãos de arroz dormem no fundo de uns dos riachos, sacolas plásticas são exibidas nas pontas das baixas árvores. E não tem um bom lugar para nos escondermos do sol.

 O pôr do sol no acampamento Base, uma das vistas mais bonitas da viagem (Foto: Alice Anjos) 

Baixamos as mochilas, penduramos roupas molhadas e, de cara, fomos tomar banho para aproveitar o corpo quente. Segundo Tensing, a água do pequeno riacho corre por cavernas no interior da rocha e nunca é tocada pela luz do sol. Ou seja, enfrentamos o rio mais gelado de nossas vidas, num coro de “ai!” e “ui!” comandado pela friorenta Madie. Ao menos estávamos limpos.

Tensing mostra no mapa os trechos que iríamos caminhar sobre o Monte Roraima

Sem ter o que fazer até o almoço, nos esprememos sob a sombra da única árvore miúda dignamente localizada. E ali passamos a tarde, falando bobagens, vendo o tempo passar e observando pela primeira vez o pássaro Charlie - um Tico-tico (Zonotrichia capensis) - que nos acompanharia ao longo de toda a viagem. Claro, não era o mesmo passarinho, mas gostávamos de pensar assim. Quando surgiam dois iguais, chamávamos o segundo de Suzie. Uma outra espécie marrom e mais gordinha era o Frank.

Charlie (Zonotrichia capensis) mostra sua cara no acampamento Base

Debaixo daquela árvore, filosofamos. Ali almoçamos e, depois, tomamos o café da tarde. Com o sol mais baixo, estudamos com Tensing o mapa do monte que pisaríamos no outro dia. Observamos o cenário formado pela dupla Kukenan e Roraima, que emolduravam um fim de tarde lindo. Tiramos fotos nas pedras - eu fazia pose a la Johny Bravo - e, mais tarde, de nossa silhueta. Alguns pés foram tratados por Borracha ao pôr do sol. Veridiana mostrava suas primeiras bolhas de sangue, enquanto Carlaile dava a fita: “Se precisar, eu corto seu dedo fora!”

Tratamento VIP nos pés de Jane sob os cuidados do "enfermeiro" Borracha (Foto: Alice Anjos)

E minha bota, que tinha mostrado a língua nos metros finais antes do acampamento, fora totalmente reformada pelo carregador José Manuel Gutierrez, costureiro de profissão, que carregava linha e agulha para o monte. "Você pisou em merda?", perguntou. "Putz, esqueci de avisar". Bendito Manolin!

Manolin deu sobrevida à minha bota

Era noite. Alice brincava de light painting, escrevendo mensagens nas fotos da paisagem, e Madie, romântica, olhava para o céu. Alguém sugeriu que Marli Kemper, uma policial catarinense também radicada em Cacoal, service o cappuccino sobre o qual ela propagandeou muitos quilômetros antes. Aquilo seria uma lenda.

Silhuetas da turma num fim de tarde mágico

Aos poucos, os colegas entraram nas barracas. E de madrugada, num xixi noturno e ainda sonolento, encarei mais uma vez a parede do poderoso Roraima iluminada de forma tímida por uma lambida de luar. Subiríamos aquilo tudo no outro dia.

Dicas deste post
- Para toda caminhada debaixo de sol, recomenda-se o básico: protetor solar, óculos escuros, chapéu ou boné e mangas longas. Também usei um tecido que cobre o pescoço, bem útil.
- O acampamento Base é um exemplo de o que não fazer no Monte Roraima. Guarde todo o seu lixo e, se puder, recolha os da trilha e coloque numa sacola pendurada em sua mochila.
- Fique esperto com as aves do local. São várias. Se puder, leve um binóculo pequeno.
- Veja o estado da sua bota. Eu tive sorte de ter um costureiro de profissão entre nós. Levei um silver tape para emergências, mas não seguraria muito tempo.

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