Segundo dia de viagem mais íngreme. Na paisagem, o Monte Roraima e o monolito natural Tök-Wasen, uma parte no extremo Sul do Roraima que se rompeu do monte (à direita)
No café da manhã experimentamos a arepa, uma massa, à base de farinha de milho e água, frita em óleo. Era a comida dos carregadores Pemóns, mas experimentamos, o casal Marcelo e Michella e eu, junto com os preparadores do café. Para os visitantes, ainda tinha pão no Rio Kukenan, não eram tempos de arepa. Seríamos apresentados oficialmente à iguaria lá em cima do monte.
Barracas no acampamento do Rio Kukenan. É hora de levantar
A guia Antonia novamente comandou a sanfona, caminhando com a infantaria que ganhava o reforço de Marcelo e Madie. Borracha guiou o pessoal da retaguarda. E Tensing? Bem, Tensing ficou pra trás cuidando da logística, daria uma boa vantagem para a gente e depois nos alcançaria em sua passada ligeira.
Otávio prepara as arepas, enquanto Gabriel explica a receita para Michele e Marcelo
Ele alcançou a infantaria na parada do lanche, no acampamento Base Militar, um espaço no meio caminho entre o acampamento Base e o Rio Kukenan, usado pelo exército venezuelano acampar na época da demarcação das fronteiras com Brasil e Guiana. Até hoje não entendi como eles armavam as barracas naquele terreno acidentado e cheio de plantas pontiagudas.
Aproveitamos para descer até um riacho e encher os cantis. Eu fui sozinho e perdi a trilha. Andei pra baixo, pra cima, pros lados até que “blosh”, pisei num belo exemplar de merda humana. Tinha encontrado a trilha novamente. Voltei onde o pessoal lanchava melões e bolacha. Todo lixo produzido é separado num saco que desce o monte e é descartado fora do Parque.
E então, repararam na expressão de Andri. Surgia o Fantasma do Monte Roraima
Nas paradas, pude conhecer melhor cada amigo de viagem. Todo mundo, aliás, ficou assustado quando reparou a cara de Andri, escondida debaixo do boné. Aquele protetor solar branco caía como massa corrida em seu rosto, dando a ele contornos fantasmagóricos. O apelido “O Fantasma do Monte Roraima” acompanharia nosso amigo Andri pelos próximos dias.
O guia Tensing e sua paixão pelas plantas. No alto do Roraima teríamos uma aula
Cinco últimas subidas, uma mais íngreme que a outra, anteciparam a chegada ao acampamento Base. Durante a caminhada, com os guias, conhecemos um pouco sobre as plantas da savana. Bromélias do gênero Brocchinia, orquídeas de várias cores e a amarela Curatella americana são algumas que enfeitam a paisagem. Ao fundo, o Monte Roraima se agigantando cada vez mais em nosso ângulo de visão. Em seu topo, nuvens nervosas eram um sinal de o que nos aguardava lá em cima.
O não tão belo acampamento Base
Era dia e fazia calor quando chegamos ao acampamento Base. A recepção não é nada agradável: o lixo se acumula no entorno de uma das barracas de apoio, grãos de arroz dormem no fundo de uns dos riachos, sacolas plásticas são exibidas nas pontas das baixas árvores. E não tem um bom lugar para nos escondermos do sol.
O pôr do sol no acampamento Base, uma das vistas mais bonitas da viagem (Foto: Alice Anjos)
Baixamos as mochilas, penduramos roupas molhadas e, de cara, fomos tomar banho para aproveitar o corpo quente. Segundo Tensing, a água do pequeno riacho corre por cavernas no interior da rocha e nunca é tocada pela luz do sol. Ou seja, enfrentamos o rio mais gelado de nossas vidas, num coro de “ai!” e “ui!” comandado pela friorenta Madie. Ao menos estávamos limpos.
Tensing mostra no mapa os trechos que iríamos caminhar sobre o Monte Roraima
Sem ter o que fazer até o almoço, nos esprememos sob a sombra da única árvore miúda dignamente localizada. E ali passamos a tarde, falando bobagens, vendo o tempo passar e observando pela primeira vez o pássaro Charlie - um Tico-tico (Zonotrichia capensis) - que nos acompanharia ao longo de toda a viagem. Claro, não era o mesmo passarinho, mas gostávamos de pensar assim. Quando surgiam dois iguais, chamávamos o segundo de Suzie. Uma outra espécie marrom e mais gordinha era o Frank.
Charlie (Zonotrichia capensis) mostra sua cara no acampamento Base
Debaixo daquela árvore, filosofamos. Ali almoçamos e, depois, tomamos o café da tarde. Com o sol mais baixo, estudamos com Tensing o mapa do monte que pisaríamos no outro dia. Observamos o cenário formado pela dupla Kukenan e Roraima, que emolduravam um fim de tarde lindo. Tiramos fotos nas pedras - eu fazia pose a la Johny Bravo - e, mais tarde, de nossa silhueta. Alguns pés foram tratados por Borracha ao pôr do sol. Veridiana mostrava suas primeiras bolhas de sangue, enquanto Carlaile dava a fita: “Se precisar, eu corto seu dedo fora!”
Tratamento VIP nos pés de Jane sob os cuidados do "enfermeiro" Borracha (Foto: Alice Anjos)
E minha bota, que tinha mostrado a língua nos metros finais antes do acampamento, fora totalmente reformada pelo carregador José Manuel Gutierrez, costureiro de profissão, que carregava linha e agulha para o monte. "Você pisou em merda?", perguntou. "Putz, esqueci de avisar". Bendito Manolin!
Manolin deu sobrevida à minha bota
Era noite. Alice brincava de light painting, escrevendo mensagens nas fotos da paisagem, e Madie, romântica, olhava para o céu. Alguém sugeriu que Marli Kemper, uma policial catarinense também radicada em Cacoal, service o cappuccino sobre o qual ela propagandeou muitos quilômetros antes. Aquilo seria uma lenda.
Silhuetas da turma num fim de tarde mágico
Aos poucos, os colegas entraram nas barracas. E de madrugada, num xixi noturno e ainda sonolento, encarei mais uma vez a parede do poderoso Roraima iluminada de forma tímida por uma lambida de luar. Subiríamos aquilo tudo no outro dia.
Dicas deste post
- Para toda caminhada debaixo de sol, recomenda-se o básico: protetor solar, óculos escuros, chapéu ou boné e mangas longas. Também usei um tecido que cobre o pescoço, bem útil.
- O acampamento Base é um exemplo de o que não fazer no Monte Roraima. Guarde todo o seu lixo e, se puder, recolha os da trilha e coloque numa sacola pendurada em sua mochila.
- Fique esperto com as aves do local. São várias. Se puder, leve um binóculo pequeno.
- Veja o estado da sua bota. Eu tive sorte de ter um costureiro de profissão entre nós. Levei um silver tape para emergências, mas não seguraria muito tempo.
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