segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Segunda-feira. Homens-pássaros e um moai negro

Com a mão no queixo e o pensamento longe, eu encarava um pequeno moai negro, de 2,5 metros de altura, com mamilos e estranhos símbolos nas costas. Sua cabeça não era coberta por um pukau, tampouco os pés pisavam sobre um ahu. Ele estava em um modesto altar branco, cercado de paredes e luz artificial, no primeiro piso do Museu Britânico, em Londres. Era junho de 2011, meu último dia em uma viagem de um mês pelas ilhas britânicas. Não esperava encontrar ali a famosa estátua rapa nui.

O poderoso Hoa Hakananai'a hoje está em outra ilha: a britânica

De volta à Ilha de Páscoa, em meu segundo dia contrariei as dicas de  Rober. Meteorologista do aeroporto Mataveri, ele me advertira para as condições do clima: chuva o dia todo. Por causa disso, iria ao museu. O ideal é ir logo nos primeiros dias de viagem para poder visitar os pontos turísticos munido de informação.

Rober me avisara da chuva, mas não disse que o museu Padre Sebastian Englert fecha às segundas. Aberto de terça a sábado, entre 9h30 e 17h30, e nos domingos e feriados, das 9h30 às 12h30, ele é uma sala simples, com muita informação em textos nas paredes, mas com poucos exemplares em sua pobre coleção. A entrada é mil pesos e vale perder uma hora lá.

Como estava perto do complexo Tahai, fui dar uma banda. Passei pelo Ahu Tahai, caminhei até os cinco moais do Ahu Vai Uri, à esquerda, e voltei até o isoloado Ahu Ko Te Riku com seu pukau sobre a cabeça e os olhos esbugalhados. Foi quando caíram as primeiras gotas. Insisti em fazer algumas fotos mesmo debaixo do chuvisco que virou garoa e, por fim, chuva de verdade. Quando chovia torrencialmente, eu já estava correndo pela Avenida Atamu Tekena, a principal de Hanga Roa, completamente encharcado, pulando poças. Parei no Centro de Artesanato.

Complexo Tahai em dia de chuva. Voltaria aqui algumas vezes

É no centro que você, leitor, vai comprar as lembranças e presentes para a família. E, como eu, tomar um café e relaxar. Tinha uma bermuda e uma blusa reserva na mochila e troquei. Fique batendo papo com um taiwandês que mora no Chile e tem parentes vivendo em Ciudad Del Este (Paraguai), enquanto tomava café. Recomendo: é o café mais barato da cidade, e você que prepara (água quente com café solúvel, leite em pó e açúcar, nada de mais).

Comprei uma capa de chuva e comentei com duas mulheres sobre a música repetitiva de Elvis Presley no rádio. “Melhor que esta música suki”, me responderam (depois falo sobre a tensão entre chilenos continentais e rapa nuis). Passei pela casa de Rober para trocar a roupa e fui conhecer o primeiro dos três grandes vulcões da ilha de Páscoa.

Amigo roubado


A subida pela trilha do vulcão Rano Kau (foto) é bastante íngreme e a caminhada dura cerca de meia hora. Se quiser economizar tempo e esforço, pode ficar na estrada e pegar uma carona ou alugar um carro. Eu gosto de caminhar. Subi, bufando, pensando em cenários irreais na cabeça, como a briga com um leão munido apenas de um pedaço de pau (!).


No alto, a 324 metros acima do nível do mar, a linda cratera do Rano Kau, com seu 1,5 km de diâmetro e 280 metros de profundidade. Lá embaixo, uma lagoa onde sobrevive vegetação com plantas autóctones e um microfauna. Do lado oposto é possível ver o mar graças a uma fratura na parede do vulcão chamada Kari-Kari.

Conheci uma americana e a falante australiana Sophia, que foi comigo por uma trilha contornado a cratera pela direita até a entrada do Parque Nacional. Lá, apresentamos o ticket para entrar no sítio arqueológico de Orongo.

A cratera do Rano Kau. Ao fundo, a fratura Kari-Kari permite a visão do mar

Era em Orongo que ficava o moai Hoa Hakananai'a (“amigo roubado”, em Rapa Nui). A estátua é singular: esculpida em basalto, tem petróglifos (entalhe nas rochas) nas costas, e representa a troca política-cultural pela qual passou a ilha Rapa Nui por volta de 1680. Bem mais tarde, em 1868, uma expedição britânica levou o moai para a coleção da rainha Victória. Hoje, ele repousa em seu altar branco, no primeiro piso do Museu Britânico, deixando confusos visitantes, como eu.

Vista do outro lado, em Orongo, a cratera de Rano Kau

Muito mais que um ovo

O século XVII foi de mudanças à sociedade Rapa Nui. Por volta de 1620 era levantado o último ahu. Sem recursos para erguer novas estátuas, os clãs preferiam derrubar os moais dos rivais. Era o fim da integração que marcou aquela sociedade e que permitiu sua prosperidade. Em 1680, o deus Make-Make (vinculado à fertilidade, primavera e às aves), antes apenas um do panteão rapa nui, passou a ser adorado com  mais afinco. A política e a cultura seriam marcadas pela caça a um ovo.

A competição do tangata-maru, o homem-pássaro, significava mais do que práticas religiosas e culturais, mas marcava a política da ilha. Em agosto, os hopu, representantes dos chefes de clã, desciam a encosta do Rano Kau até o mar e nadavam os 1.400 metros entre Páscoa e a ilha Motu Nui, a maior das três ilhotas no extremo sudeste (as outras são Motu Iti e Motu Kao-Kao - "Motu" significa "ilha").

Depois de Orongo, já na orla. Pescadores enfrentam o mar furioso 

Segundo a lenda, o deus Make-Make vivia nesta ilha. Foi ele que trouxe a ave manutara (Onychoprion fuscatus) para se reproduzir em Motu Nui. Os homens ficavam dias ou semanas na ilha até as aves chegarem para nidificar, normalmente em setembro. O cara tinha que pegar o ovo, prendê-lo à cabeça e nadar de volta para Páscoa. Quem chegasse antes se tornava o tangata-maru por um ano e ganharia privilégios e tabus (tapu), como não poder ser encarado por ninguém. Ele desfilaria por toda a ilha com sua família e clã, para comemorar a vitória, e fixaria residência em Orongo ou Anakena. O chefe de seu clã era eleito rei da ilha também por um ano.

A mais distante das ilhotas, Motu Nui, recebia homens e pássaros todo ano

Em Orongo você pode imaginar tudo isso ao ver, ao fundo, as três ilhas. No vilarejo, estão as 54 casas de pedra em formato de canoa, usadas unicamente durante a competição do homem-pássaro. Também estão a maior parte dos petróglifos da ilha, quase 500, representando Make-Make, manutara e o tangata-maru. A última competição aconteceu em 1867 e foi vista por missionários católicos.

Ana Kai Tangata e a falante australiana Sophia

Na volta para Hanga Roa, pegamos carona com um nativo para descer o Rano Kau. Caminhando pela orla, parei para apreciar o mar nervoso e azul surrando as pedras negras. Gente pescando, momento para reflexão. Perto de um parquinho, tem a escada que leva a Ana Kai Tangata, uma caverna voltada para o mar onde os Rapa Nui faziam embarcações.

Ahu Vai Uri ao pôr do sol. Depois, voltei pra casa no escuro, tateando o ar
 
Separei-me de Sophia e ela continuou o trajeto com um casal de húngaros. Almocei algo qualquer no centro e fui novamente para Tahai. Queria fazer fotos do pôr do sol, mas fiquei lá mais tempo que deveria. Estava escuro, sem iluminação artificial tive que caminhar tateando o ar, passei pelo cemitério de muro baixo com aquelas luzinhas alimentadas por energia solar. Sinistro. Ilha de Páscoa dormia, era só eu naquelas ruas silenciosas. Cheguei, enfim, à casa de Rober e tomei uma sopa de tomate com meu amigo mestre-cuca. Estava bem cansado.

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