quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Quinta-feira. Nas costas do gigante

Quando cheguei ao cume do Maunga Terevaka, o dia estava feio. Uma névoa pesada tornava branco tudo ao redor. Subira para isso: não ver nada. Fiquei puto. Ajeitei a mochila no chão, deitei sobre a camisa, cruzei os braços e esperei. “Daqui não sai até o tempo abrir”. Passaram uns 30 minutos e ... o tempo abriu.

Tanto esforço pra nada. Mas isso não ficaria assim

Em meu primeiro dia no hostel Mihinoa fiz um café da manhã de rei: ovos mexidos, tomate, café e iogurte. Comi sobre o mapa aberto enquanto procurava o que ainda não tinha feito na ilha. Circulei com a caneta os vulcões Poike e Terevaka com a promessa de conhecer os dois. Só cumpri metade.


Café da manhã de rei e planejamento para quinto dia

Aluguei uma bicicleta por 10.000 pesos e parti para o Terevaka. Desta vez estava preparado, com bota e uma mochila grande. Não passaria aperto novamente. A distância é pequena, em 15 minutos, em uma estrada boa, já avistei o Ahu Akivi - passara por ele no dia anterior, quando minhas prioridades eram outras.



De bicicleta por Páscoa a caminho do Terevaka

Antes de ver os moais fui conhecer as tais cuevas, as cavernas que rodeiam o Terevaka. Fui à Ana Te Pora e, a primeira vistam não achei nada demais, uns buracos grandes no chão meio sem sentido. Mas explorando melhor encontrei pequenas aberturas dentro destes buracos e cavernas imensas ligando, como corredores, a entrada e a saída. Na época das guerras, o povo morava nestas cavernas para se proteger. Caminhei algum tempo sozinho pela escuridão total iluminada apenas por um foco de luz da minha lanterna.

Nas cuevas sob a luz apenas da lanterna

Depois de um bom tempo explorando cavernas, pedalei novamente em direção ao Akivi. Amarrei a bicicleta em uma cerca e fui observar o ahu. Cruzei novamente com Sophia, sempre com seus óculos pesados, um pouco certinha demais e irritante. Ela estava com um guia que começou a me contar sobre os sete moais.

Os sete homens de Akivi olhando para o mar

Akivi é o único ahu cujos moais olham para o mar. Eles representam os sete viajantes que primeiro chegaram à ilha em uma viagem de reconhecimento para a expedição de colonizadores liderados por Hotu Matu’a ("o Grande Pai"), o primeiro rei (ariki) de Páscoa, por volta do ano 900. As estátuas se voltam para o pôr do sol do equinócio, com se orientassem os próximos viajantes. Começou a ser construída no século XV, em três fases. Diz a lenda que um dos sete morreu na praia de Anakena, mas a homenagem eternizou o grupo original.

Eles guiaram a chegada do primeiro rei, Hotu Motu' a

A colonização de Páscoa, aliás, é uma das últimas de toda a Polinésia. Seus primeiros habitantes chegaram de canoas, provavelmente das Ilhas Marquesas. A data é bastante controversa - entre 400 e 900 anos d.C. Hawaí, a ponta norte do triângulo, foi colonizada antes (entre 200 e 400 d.C.) e Nova Zelândia, ao leste, foi a última ilha colonizada (entre 800 e 1200 d.C.).

Entrada do Terevaka. Vá pela placa amarela! 

Comecei a pouco íngrime subida do Terevaka. Recomendo o caminho à direita, onde tem uma placa amarela (dizem que o outro é mais difícil). Subir o maior vulcão da ilha não é nada demais, poderia até ter empurrado a bicicleta. A descida seria doidera. Uma hora e 20 minutos, já estava na primeira cratera, Rano Aroi, a mais importante. Parei para comer um lanche e apreciar a vista do sudoeste da ilha: a cidade de Hanga Roa, o vulcão Rano Kau, as baías. Um pouco mais, cheguei ao cume a 510 metros acima do nível do mar, marcado com uns pedaço de pau e uma cabeça de gado. Tudo estava branco e sombrio.

Lanchinho para apreciar a vista

Tive que esperar a névoa passar para apreciar a vista. Temos tempo para conhecer a formação da Ilha de Páscoa: seu surgimento começou há 3 milhões de anos com a explosão que criou o vulcão Poike, o mais velho, ao leste. Mais tarde, há 2,5 milhões de anos, a erupção foi na ponta sudoeste, com o soerguimento do Rano Kao. O triângulo, e a ilha, estaria completo por volta de 300 mil anos atrás quando elevou-se, ao norte, o maior de todos os vulcões, o Maunga Terevaka, sobre o qual eu estava naquele momento.



Outros 70 cones vulcânicos tomam conta da paisagem. A névoa passa e, estando voltado para o Sul, vejo o Poike, à minha esquerda. É possível identificar uma ponta do Rano Raraku, a oficina dos moais e, não fosse uma montanha intrometida até focaria os 15 homens do Ahu Tongariki com um binóculo. À direita, uma nuvem teimosa ainda escondia o cume do Rano Kau, mas Hanga Roa, as baías do noroeste da ilha, a entrada das cuevas do pé do Terevaka, estavam todos visíveis. Tinha a vista ainda da costa Sul e da costa Norte e, não fosse outra montanha, talvez enxergaria a areia branca da praia de Anakena, no nordeste da ilha.

Na descida do Terevaka, vaca

A descida foi mais tranquila e igualmente silenciosa. Vi vacas sobre o Terevaka e a paisagem foi se modificando, a medida que eu perdia altitude. De volta ao Akivi, encontrei Tiago, um paulistano moreno e forte, com nariz adunco e cara de inca, que eu conhecera no dia anterior quando tomei café com os italianos, e que fora à ilha pensando em pegar mulher. Perguntava de tudo, se valia a pena ficar neste hostel e se era bacana aquele restaurante. Passados os três primeiros dias, eu já era cidadão ilhenho e respondia tudo.

O bom e velho Ahu Ko Te Riku, no complexo Tahai

Fizemos boas fotos do fim de tarde em Akivi. Deixei de conhecer a montanha de Puna Pau, onde eram fabricados os pukaus. Coloquei a bicicleta no carro que Tiago alugara e fomos para Tahai - mais uma vez Tahai, fazer fotos do pôr do sol. Acertei em algumas e fomos a centro. Lembrei-me que tinha compromisso com os amigos chilenos.

Chilenos e rapa nuis

O novo encontro com os camaradas chilenos só reunia homens. Nacho tinha o alvará de uma noite cedido por Vianca, que ficara em casa cuidando de Amanda. Estávamos na casa de Rober, com Simon ronronando à distância, e o rapa nui Tete preparando o churrasco. Na mesa, cerveja Escudo, Piscola (pisco com Coca-Cola) e um vinho da adega de Nacho. Sobre o fogo, pedaços gordos de carne de porco ("big bacon", apelidei), frango, linguiça e pão. Tete, único amigo rapa nui de Nacho, exibia no pescoço um colar com dentes de cavalo e, na cabeça, um chapéu a la Crocodilo Dante. Espirituoso, brincava comigo e eu respondia à altura . "Gostei dele”, disse a Nacho.

Tete, rapa nui. Eu, brasileiro

Foi bom aquele contato direto com um rapa nui. Quando viajamos, é comum nos preocuparmos em fotografar os pontos turísticos, provar pratos típicos, comprar souvenir. Só. O turista se esquece de que há uma vida no local. Na remota Páscoa, por exemplo, não existem apenas moais, vulcões e praias paradisíacas, mas um povo com dilemas e necessidades como os nossos. Ou até mais.

Rapa Nuis são Rapa Nuis, não chilenos

A amizade entre o chileno continental Nacho e o rapa nui Tete é mais exceção do que regra. Rapa nuis e chilenos do continente dividem a ilha quase meio a meio. São sete mil habitantes. Pouca amizade entre os dois lados. Pudera, os Rapa Nui nunca se reconheceram chilenos. Em 1888, o país anexou Ilha de Páscoa para usá-la como fazenda de ovelhas administrada por uma empresa escocesa. O povo ficou confinado em uma parte da ilha e foi forçado a trabalhar na fazenda sendo pago com alimento.



Foi triste o fim da história Rapa Nui. O início da queda aconteceu quando perceberam que o desastre ambiental era irreversível. Vieram as guerras, a fome, a tentativa de plantar em uma terra devastada. Então chegaram os europeus. Começou com o navio do holandês Jacob Roggeveen, em 5 de abril de 1772, dia de Páscoa, o que originou o nome da ilha e apresentou Rapa Nui ao mundo. As visitas do povo do velho mundo ficaram mais frequentes, vieram as epidemias de varíola e o triste ano de 1863, quando 24 navios peruanos sequestraram 1.500 rapa nuis, a metade da população, para trabalhar como escravos em minas de guano no Peru.

As cicatrizes deste povo sofrido nunca se fecharam.

Bem, para Nacho e Tete sim. Depois de meu novo amigo rapa nui ir embora, fiquei tomando Piscola com Nacho e Rober. Inventei de fazer minha própria dose e os dois arregalaram os olhos quando enchi o copo de Pisco. Conversei muito com Nacho sobre família, casamento e paternidade. Um aprendizado com o pai de Amanda e esposa de Vianca.

A música de Nacho

A noite prometia mais. Cheios de pisco na cabeça, fomos ao bar Topatangui, ponto de encontro dos locais e turistas. Ouvi a música rapa nui e o suk, sempre metido a besta em algum clássico pop. Emocionei-me sentindo falta antecipada de tudo aquilo. Como era bonito ver os nativos de divertindo, como era linda a cultura de Páscoa.

Ou simplesmente, porque eu estava beeeem bêbado.

Rober foi para casa e eu fui para outro bar com Nacho e Lev, o cara da "mãozinha”, que guiou o carro, Nacho estava pior que eu. A gravação que fiz de nossa conversa dentro do carro enquanto ouvíamos a música favorita de Nacho é impagável. Até hoje rio quando ouço. O segundo bar estava chato e eu, já na Coca-Cola, esperava o efeito do álcool se dissipar. Despedi-me do pessoal e fui caminhando trôpego para o hostel, xingando os moais e ouvido o mar nervoso.

Passavam das quatro quando fui dormir. No outro dia, acordei com dor de cabeça.

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